domingo, 5 de dezembro de 2010

Epifania de Pedro

Foi um dia bonito, ele diria. Sabia reconhecer a beleza das cores à sua volta. A manhã começou anuviada. Ele ouvia o zunido trepidante do vento quando acordou. Sentia, sim, um gostinho enjoativo de normalidade. Tomou seu habitual desjejum, com seu prestimoso café. Leu o jornal com seu ar altivo de beletrismo. Receberia a doce visita do amor de sua vida se não estivesse absorto. Por descuido não havia atendido a ligação.

Isso fez toda a diferença.

Era um sábado regado a descompromisso e liberdade, independência nas escolhas. Algo que todo homem se apraz em sentir. Aliás, é nesse tipo de momento que pode-se conhecer um homem. Em sua liberdade, em sua desobrigação de encenar um personagem; quando os gostos sinceros rumam os caminhos e as veleidades são realizadas sem pudor.

Pedro sempre foi um espécime exemplar: garboso nas atitudes, bem sucedido em qualquer aventura, romântico, amante das belas artes, razoavelmente inteligente e com uma contumaz ojeriza por todo tipo de obviedade. Simplesmente detestava o modo automático como algumas situações ocorriam no cotidiano. Pra ele essa forma de viver oblitera o sentido das coisas. É preciso reinventá-las. Reinventar-se. Diariamente. Abstinência de criatividade constituía seu umbral.

Pedro decidiu emergir do mar de marasmo de sua casa. Era um belo crepúsculo. A tarde veio acompanhada de um exuberante sol, mais dourado do que costumava ver. Caminhou solitariamente durante vários minutos, com o som de Welcome To Wherever You Are (Bem-vindo onde quer que você esteja) em seus ouvidos. A boa música não se ouve; sente-se. Pedro comprovou isso na prática. Via o mundo de forma diferente. As esquinas que conhecia como a palma de sua mão ganharam novos contornos e detalhes inexplorados. Percebeu a grandeza da vida. O poder da criação. A beleza que em tudo há. Apesar de suas qualidades aos olhos alheios, não conhecia plenitude. Sentia-se lacunoso. Percebeu o quanto o ser humano é mesquinho e frívolo. Mas notou, outrossim, que isso não passa de sua natureza. A noite caia valorizando as luzes, formando um belo trilho de postes de luz. Pedro fechou os olhos, sentindo algumas gotas tímidas de chuva, e indagou aos céus o porquê de suas dúvidas, seus anseios, receios e dissidências. Quando abriu os olhos a luz do poste acima de sua cabeça vacilou tremeluzindo, até que – de repente – se extinguiu por completo. Naquele momento ele reconheceu o efeito de suas preces, o efeito da pujança de quem crê.

Todo dia antes de dormir, Pedro pratica sua fé. Formula suas orações. Senti o poder de uma energia maior. Capaz de pô-lo num patamar superior e fazê-lo crer em sua divindade, a despeito das imperfeições e do excesso de humanidade em suas veias. Depois de ter chego a sua casa, qualquer palavra mais afetiva desencadeava um amarfanhado de lembranças e sentimentos. Lágrimas vinham à tona com uma facilidade exacerbada.

Como pode alguém tão completo, repleto de dádivas e sucessos, possuir vazios internos? Como pode alguém que dá o melhor encontrar o desamparo? Como pode?

Pedro compreendeu-se ambivalente; razão e emoção iam se conflagrando. Mais uma peripécia de epifania. Deus se pronunciava através da beleza melancólica daquela noite... Teve a certeza de ter ouvido Seus cochichos mesclados com a melíflua música supracitada.

A vida não te dá todas as respostas. Ela te chicoteia através das dúvidas. E não é feio admiti-las, só as possuiu quem ousa pensar e se atreve a não ignorá-las. Só podem ser atenuadas com a impermanente convicção oriunda dos sentimentos verdadeiros. Aqueles que vêm lá do fundo da alma e, pela sua força aterradora, não se permitem estar errados. Não é fácil quando o melhor não é o bastante, mas a chance de ir além deve ser valorizada, abraçada. As coisas boas merecem sobrepujar as ruins, por mais latejantes que as últimas estejam. Em reveses dolorosos e situações intricadas deve haver a percepção de que a chance de viver que nos foi concebida precisa ser cuidada, e por si só já é o maior motivo para ir adiante. Perseverar.

Pedro acordou rejuvenescido no dia seguinte, decidiu abnegar-se aos seus sonhos e aos seus amores. Jamais deixaria de atender ao telefone. E jamais deixaria de atender seu coração. Encontrou, aí, o melhor modo de atender à vida, enfim.

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